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Os habitantes de New South Wales referem-se aos de Victoria como mexicanos, por estarem ao sul da fronteira. Piadinhas à parte (e essa é boa), a rixa entre os dois estados, principalmente entre as duas capitais, é imensa. E antiga! Uma espécie de Rio-São Paulo
down under.
No ano passado, por exemplo, sabendo que o contrato do Australian Open terminaria em 2016, Sydney começou a trabalhar nos bastidores. Melbourne foi mais rápida e prorrogou até dois mil e trinta e pouco. Esse final de semana, New South Wales lançou campanha para tirar a Fórmula 1 de Melbourne e trazer para ser disputada à noite em Sydney. Eles não gostaram! E assim vai ser para sempre.
Mas independentemente das brigas, a certeza é uma só: Melbourne é, de fato, a capital esportiva e gastronômica da Austrália. E não se fala mais nisso!
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A razão principal da nossa viagem foi o jantar que aconteceu na segunda-feira passada, 22 de março, no Jacques Reymond, eleito em 2009 o segundo melhor de Victoria pela Australian Gourmet Traveller.
O evento fazia parte da Melbourne Food and Wine Festival, e o convidado mais do que especial da noite era o grande Alex Atala. Grande não só por tudo o que tem feito pela gastronomia brasileira e conquistado, mas pelo que cozinhou (sim, o homem colocou a mão na massa) e pela simplicidade demonstrada. É "O Cara"!
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Jacques Reymond é um chef francês radicado há anos na Austrália que, ao lado da mulher e da filha, a sommelier da casa, toca o restaurante. O restaurante, aliás, fica numa casa grande, um casarão aparentemente residencial, se não fosse por uma discreta placa com o nome. Do portão, semi-aberto, passa-se por um belo jardim na frente que termina na varanda. Lá dentro, distribuidos pelas salas, éramos 72 clientes reunidos por uma única razão: Alex Atala.
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Fui com dois amigos chefs, um que trabalha no Mad Cow, em Sydney, e outro que é formado, já trabalhou na área, mas não está mais. Sabíamos que seriam 8 pratos e através da entrevista que fiz com o chef para a
Radar Magazine, tínhamos uma idéia do que ele apresentaria, mas eu estava realmente curioso para saber como seria a harmonização dos vinhos australianos com os sabores brasileiros. Eles acertaram em cheio!
Como de costume, o jantar foi aberto com uma champa: NV Moet & Chandon Brut Imperial Magnums, que além de dar às boas-vindas, acompanharia as duas primeiras entradas:
Sea scallops in coconut milk and aromatic pepper with crunchy mango e
Young zucchini and langoustine salad with Brazilian herbs. Ambas perfeitos cartões de visita do que seria o jantar: influência total da cozinha contemporânea espanhola (haja espuma), base francesa e ingredientes brasileiros com toques asiáticos.
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Na sequência foi servido
Oyster in brioche crust with marinated tapioca com um 2009 Howard Park Riesling, Great Southern (WA). Eu gostaria muito de ter provado a Champagne com essa ostra por conta do sabor do brioche, que é encontrado na champa. Mas, claro, a minha taça já estava vazia.
O quarto prato foi o que mais me chamou a atenção:
Liquid coconut risotto with dende oil, mint and nori. Isso mesmo, risoto líquido! A apresentação estava fantástica, parecia uma sopa branca, rasa, sobre duas outras sopas, uma verde quase fosforescente (menta) e a outra laranja avermelhada do dendê. Comia-se de colher, claro, e apesar da consistência líquida, ao fechar os olhos o sabor era 100% de risoto. Fantástico!
Para tomar, 2009 Toolangi "Jacques Reymond Selection" Chardonnay, Yarra Valley Magnum (VIC). Como o próprio nome diz, é uma seleção do próprio restaurante conduzida pela filha do homem (que aliás, estava lá jantando e é uma gata - o melhor "partido" de Melbourne - como diria a minha vó, já que é bonita, sabe tudo de vinho e é herdeira de um dos melhores restaurantes do país).
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O
Snapper with black curry, snow peas and lemon grass sauce foi uma explosão de sabores e mais espumas. A essa hora nós três já havíamos ido ao banheiro para passar perto da cozinha e ver o homem trabalhando. Quando passei, ele estava debruçado na bancada com todos os outros cozinheiros.
O vinho servido foi o 2009 Region 13 Pinot Noir Bellvale Vineyard, Gippsland (VIC), tremendo Pinot de uma região que até aquela noite eu nunca ouvira falar e tem uma história interessante. Lembram dos incêndios que aconteceram em Victoria em fevereiro do ano passado? Então, esse produtor perdeu 95% da colheita daquele ano e o vinho foi produzido com parte dos 5% que sobreviveram. O Pinot acabara de chegar ao restaurante, está ainda bem fechado e possui um sabor esfumaçado que nada tem a ver com os incêndios.
O último dos pratos prncipais foi um
Baby pork ribs with cassava fenomenal. A cassava, para quem não sabe, é a nossa mandioca. Ela foi feita palha, cortada bem fininha e crocante, simplesmente e-p-e-t-a-c-u-l-a-r. E o vinho, um 1997 Plantagenet Shiraz, Mount Baker (WA), foi disparado o mais sério da noite. Canhãozaço no melhor estilo de Shiraz que a Austrália produz!
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As sobremesas foram
Passionfruit sorbet with priprioca e
Banana, lemon and priprioca ravioli servidas com um 2009 Delatite "Catherine" Gewurztraminer, Mansfield (VIC). Se você não faz idéia do que é uma priprioca, não se preocupe. Nós também não fazíamos e, ao perguntarmos para os garçons, eles demonstraram grande dificuldade para explicar. Como jamais voltaríamos para Sydney sem saber que diabo é a tal da priprioca, o jeito foi perguntar para o homem.
De brasileiro no restaurante, só havia nós três, um casal, o chef e provavelmente um assistente que veio com ele. O resto era tudo gringo. Fanfarrões, desde o começo ficamos amigo de todo mundo, em especial do maitre, da sommelier (não a filha) e dos garçons que explicavam cada prato (a brigada, por sinal, afinadíssima e muito gente fina, não tinha nada de arrogante ou o que quer que seja, como acontece em alguns restaurantes de alta gastronomia). Ou seja, o chef já sabia da nossa existência. E eu, como havia o entrevistado, estava com um exemplar da revista para entregá-lo.
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No final do jantar, o chef acompanhado do outro chef, o dono da casa, passou em algumas mesas para cumprimentar (na verdade, receber os cumprimentos). Visivelmente cansado, mas sorridente e muito atencioso, de calça jeans e tênis comum, Atala veio com Jacques Reymond até a nossa mesa e, para a nossa surpresa, pudemos falar em português, já que o francês também falava.
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Radar Magazine na mão, Atala explicou que a tal da priprioca é uma raiz que ele encontrou na Amazônia juntamente com uma empresa que trabalha em parceria. Como o assunto era pesquisa de ingredientes, falamos sobre o Cerrado, os índios da região e até identificamos alguns conhecidos em comum. E para quem não acredita que o mundo é minúsculo, essas pessoas com quem ele trabalhava não só foram citadas no meu livro, como parte do dinheiro arrecadado em um dos projetos foi doado para a aldeia Wederã, a mesma que fiquei e me adotou quando estive no Mato Grosso, resultando no "
Meu Avô Aúwê". Ou seja, o homem, conhecido por ser ex-punk, também é xavante. É O Cara!!!
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PS: detesto
junkie food, não suporto a cara do Ronald Mcdonald (o palhaço, não o filho do Fenômeno), estou sempre cornetando essas lanchonetes, mas o hotel que ficamos era ao lado de um 24 horas. E bebendo em escala industrial, no domingo, em plena Melbourne Food and Wine Festival, entrei para o Guinness indo 3 vezes ao Mc no mesmo dia, a primeira às 11 da manhã chegando da noite anterior, depois por volta das 19h antes de descobrir um dos melhores bares de música ao vivo de St. Kilda e a terceira após ter descoberto um dos melhores bares de música ao vivo de St. Kilda. Claro, inconformados, os palhaços registraram o momento vergonhoso.
Foto de Alexandre Rubial "Burguer King" Monteiro